Chuvas melhoram nível de Furnas, mas especialistas alertam para risco

Após cerca de três anos de estiagem prolongada, este início de 2016 trouxe as margens do Lago de Furnas de volta ao Sul de Minas. Pela primeira vez em mais de dois anos, o reservatório atingiu sua cota mínima satisfatória de 762 metros acima do nível do mar, aquela que agrada tanto empresários e moradores que dependem do lago quanto o país que depende de luz. Clique em Leia Mais  e confira notícia completa.

Nesta terça-feira (22) comemora-se o Dia Mundial da Água e também o alívio por um verão chuvoso após anos preocupantes no Brasil. Mas segundo alguns especialistas ouvidos, ainda não é tempo de suspirar aliviado.

Hidrelétrica de Furnas com nível baixo do lago. (Foto: Tiago Campos / G1)Hidrelétrica de Furnas com nível baixo do lago no início do período de estiagem (Foto: Tiago Campos)

De um lado, a meteorologia dá a boa notícia de que choveu acima da média em algumas regiões de Minas Gerais, a “caixa d’água do Brasil”, mas ainda é preciso cuidado e mais chuva para estar tudo bem. De outro, especialistas em energia afirmam que o sistema elétrico brasileiro ainda é muito dependente da água pra ser considerado seguro, e se “São Pedro” não colaborar e mudanças forem feitas, haverá sempre possibilidade de problemas no futuro.

Mínimo de satisfação
Para entender esse mínimo satisfatório é necessário “rebobinar a fita” até a construção do Reservatório de Furnas, no final dos anos 50.

Foto mostra Guapé sendo tomada pelas águas do reservatório de Furnas (Foto: Arquivo Prefeitura Municipal de Guapé)Guapé foi uma das cidades alagadas para construção do reservatório de Furnas (Foto: Arquivo Prefeitura Municipal de Guapé)

A criação do hoje denominado Lago de Furnas alagou 1.440 km² de terras na região, muitas delas férteis, o que mudou a vida de milhares de moradores que viviam do que a região produzia. A construção do lago ainda alterou completamente a paisagem da região, que de alguns dias para a noite, passou a ter um “mar” em Minas.

Para compensar todo o impacto que a região sofreu, e que não poderia ser contornado apenas com as indenizações de desapropriações de terras, foram desenvolvidas atividades a partir do Lago de Furnas. Centenas de pousadas turísticas surgiram no entorno do reservatório e empreendimentos de esportes náuticos, além do incentivo à prática de pesca e da piscicultura.

Para que tudo isso funcione na mesma proporção, o Lago de Furnas tem que se manter em no mínimo 762 metros acima do nível do mar. Assim, apesar da baixa de alguns metros durante a estiagem (a capacidade máxima de armazenamento do lago é de 769 metros acima do nível do mar), o reservatório não se afasta muito das suas margens e continua sendo um lago.

Pousada em Carmo do Rio Claro sem as águas do Lago de Furnas (Foto: Samantha Silva / G1)Pousada em Carmo do Rio Claro sem as águas do Lago de Furnas (Foto: Samantha Silva )

Acontece que para continuar operando a usina de energia elétrica, o reservatório precisa estar com, no mínimo, 150 metros de nível, ou seja, 12 metros abaixo do que a Associação dos Municípios do Lago de Furnas (Alago) – que defende os interesses do entorno do lago – considera satisfatória.

Para manter a geração da energia em tempos de estiagem, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) manda liberar água para as usinas a jusante do reservatório até o limite em que é possível, e com isso, o Lago de Furnas praticamente desaparece de muitos municípios do seu entorno impactando toda a economia local.

A briga entre o ONS e a Alago é antiga, e nessa peleja, o lado nacional sempre sai ganhando, já que acima de tudo, a prioridade de Furnas é manter a geração de energia elétrica. “Esse é um trabalho constante nosso. A gente está sempre questionando, pressionando, falando, pra manter esse assunto em pauta sempre. Pra tentar outra forma de geração de energia”, completa Fausto Costa, secretário executivo da Alago.

Mas segundo os especialistas ouvidos pelo G1, para além dos impactos econômicos que a região enfrenta, esvaziar os reservatórios traz riscos para que o fornecimento de energia elétrica se mantenha. Diminuir a reserva é arriscado e significaria apostar demais na volta da chuva para que tudo se normalize.

Chuvas fazem reservatório de Furnas subir 27 centímetros no Sul de MG (Foto: Reprodução EPTV)Alago ‘briga’ para que nível do Reservatório de Furnas se mantenha em 762 metros (Foto: Reprodução EPTV)

Gestão que ajuda dois lados
No início de 2001, Afonso Henrique Moreira Santos estava à frente da Secretaria Nacional de Energia e fazia um pedido à população brasileira: a palavra de ordem era reduzir o consumo, já que o país estava à beira de um colapso energético. Cada dia que passava sem chuva, o racionamento acenava como única possiblidade de controlar a situação.

Naquele mesmo ano o Brasil enfrentou o apagão e anunciou a necessidade de mudanças no sistema elétrico nacional. O “aperto” que o país passou fez com que o governo investisse em geração de energia termelétrica significativa, de produção mais cara, mas que controlou a situação para que não houvesse outro apagão nesta estiagem dos últimos três anos.

Afonso Henrique Moreira Santos, professor Unifei, Furnas (Foto: Afonso Moreira Santos / Arquivo pessoal)

‘Hidrelétricas tem que perder essa importância’, diz Afonso Moreira Santos (Foto: Afonso Moreira Santos / Arquivo pessoal)

Mas segundo Santos, esvaziar os reservatórios para manter o fornecimento de energia e adiar o ativamento das termelétricas para segurar o preço da conta de luz é insensato. “Nós estamos comemorando porque chegou na 762, mas na verdade ele não deveria ter descido da 762. Não está bom”, afirma.

“O Reservatório de Furnas é uma caixa d’água, e toda a regularização de vazão que ela faz passa pelas usinas todas a jusante no Rio Grande e no Rio Paraná, até Itaipu. Se você regulariza a água, ou seja, guarda na chuva para soltar na seca, você está trazendo benefício para todo o sistema. Isso é verdade? É. No conceito antigo é verdade”, defende.

Além de ter sido secretário nacional de Energia, Santos já ocupou a diretoria da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e foi presidente da Sociedade Brasileira de Planejamento Energético até 2006. Atualmente é professor titular na área de recursos hídricos e energia da Universidade Federal de Itajubá (Unifei-MG). Segundo ele, esse é o conceito da década de 50 e 60 quando tudo girava em torno das hidrelétricas.

Continuou-se esvaziando os reservatórios para segurar o fornecimento de energia – e o preço da conta de luz – e assim, as termelétricas são ativadas somente quando as hidrelétricas começam a entrar no nível de risco.

Com o risco evidente de uma estiagem prolongada, que era prevista em 2012, o governo deveria preservar o reservatório.”
José Goldemberg, IEE/USP

“Hoje mais de 20% do nosso parque gerador é termelétrica e aí eu não [precisaria] usar os reservatórios pra fazer essa regularização de vazão. O setor elétrico operou de uma forma imprudente nos últimos anos: esvaziam o reservatório colocando todo o país em risco. E a gente viu isso. Os reservatórios ficaram baixíssimos e as térmicas mais caras operando o tempo todo”, completa.

José Goldemberg, físico que também já ocupou a Secretaria de Ciência e Tecnologia e a Secretaria de Meio Ambiente nacional, entre outros cargos políticos, defende o mesmo ponto de vista. Atualmente no Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP), assim como Santos, ele acredita que a ideia fixa do governo em manter as tarifas mais baixas (modicidade tarifária) é uma decisão política e desperdiça a água dos reservatórios ao demorar muito em acionar as térmicas.

“A energia das hidroelétricas é mais barata do que a energia das térmicas. O sistema de despacho do Sistema Interligado Nacional é programado desta forma, o que não é uma maneira racional de operá-lo. Com o risco evidente de uma estiagem prolongada, que era prevista em 2012, o governo deveria preservar o reservatório”, completa.

José Goldemberg, físico e ex-ministro de Educação / IEE-USP (Foto: Leandro Negro/Fapesp)‘Governo deveria preservar o reservatório’, diz José Goldemberg (Foto: Leandro Negro/Fapesp)

As bandeiras tarifárias
Em janeiro do ano passado, a Aneel anunciou a cobrança das bandeiras tarifárias na conta de luz, que nada mais é que repassar para o consumidor os custos mais altos da geração de energia elétrica com a ativação das termelétricas, evitando o racionamento. Elas foram ativadas quando o volume dos reservatórios começou a descer muito com a falta de chuvas principalmente na região Sudeste/Centro-Oeste, responsável por 70% do armazenamento de água para geração de energia no país.

O Lago de Furnas é um dos reservatórios que está na região, e de acordo com o ONS, responde por cerca de 17,18% da região Sudeste/Centro-Oeste, o que representa 12% do armazenamento para geração de energia no país.

É aí que começa a crítica dos especialistas. Para Santos, uma vez que os níveis dos reservatórios começassem a reduzir, as termelétricas já deveriam ser ativadas, e de preferência, equipamentos de geração mais barata.

Atualmente no Brasil, de acordo com informações da Aneel, há 2.878 usinas deste tipo, e dessas, a maioria funciona à óleo diesel, o tipo mais caro, e que encareceu ainda mais com a alta do combustível nos últimos anos. Menos de 800 termelétricas funcionam com outros tipos de materiais, como à gás natural e bagaço de cana de açúcar, e isso ainda não quer dizer que sejam de produção barata.

Usina termelétrica da Petrobras em Duque de Caxias (RJ). Lista colocou a estatal brasileira entre as 20 empresas que mais emitiram gases-estufa em 2013 (Foto: Divulgação/Agência Petrobras)Usina termelétrica da Petrobras em Duque de Caxias (RJ) (Foto: Divulgação/Agência Petrobras)

“A maioria no sistema brasileiro é do tipo mais caro”, continua Santos. “Devia ter ligado as térmicas mais baratas o tempo todo pra não deixar o reservatório esvaziar. Quando ele esvazia, ele perde altura, e em consequência gera menos energia pra mesma água. O mesmo metro cúbico de água perde energia. Furnas chega a perder 17% de energia por esvaziar. Então é um conceito errado. Pra produzir mais, eu não preciso esvaziar, pra produzir mais eu tenho que deixar o reservatório mais cheio.”

Santos defende que o correto seria ter um sistema inteligente com o máximo de informação passada ao consumidor, que teria o poder de escolha.

“Tarifa real para o consumidor. A gente chama de dinâmica, tempo real. Dá liberdade para o consumidor, [essa] tutela é pior. Teriam momentos muito mais caros, é verdade, mas também teriam momentos muito mais baratos. E no mais caro, em que o consumidor deixa de consumir, ficaria mais barato esse consumo. [Assim] eu invisto na minha própria geração de energia. É só respeitar o consumidor como cidadão. Só não pode do jeito que fez, que juntou tudo: lago vazio com térmica cara”, completa.

Goldemberg embarca no raciocínio. “O resultado foi de fato contas de luz altas, mas que o governo represou usando recursos do Tesouro que tiveram que ser pagas em 2015, levando a um aumento de cerca de 50% nas tarifas”, afirma.

No dia 25 de fevereiro, o governo anunciou que a cobrança extra nas contas de luz será eliminada em abril, devido ao desligamento das usinas térmicas.

Placas de captação de energia na primeira usina solar do estado de São Paulo, instalada em Campinas  (Foto: Reprodução EPTV)Placas de captação de energia na 1ª usina solar do Estado de SP, em Campinas

Uma solução?
Se existe um modo de agradar “gregos e troianos”, essa solução, para os especialistas, seria o país investir mais em fontes de energia alternativas. Assim todo o sistema funcionaria sem prejudicar tanto o bolso do consumidor: fontes de energia como a eólica e solar seriam ativadas, reduzindo custos; os reservatórios não seriam esvaziados, diminuindo o risco de um colapso, e de “bônus”, não traria tanto impacto para a economia de regiões como o Sul de Minas.

Fausto Costa, secretário executivo Alago, Furnas (Foto: Reprodução EPTV)‘Precisamos tentar outra forma de geração de
energia’, diz Fausto Costa da Alago

A energia solar é principalmente incentivada para instalação em residências e comércios, em que o proprietário poderia “vender” a energia que não foi usada no imóvel para as distribuidoras, ganhando desconto e aumentando a reserva de energia no país. Mas o investimento nesse tipo de equipamento ainda é caro no Brasil, o que impede uma adesão maior.

“A hidrelétrica tem que perder essa importância urgente, que no mundo já perdeu, mesmo as térmicas estão perdendo. É um sistema arcaico, envelhecido, seja na geração ou distribuição de energia”, afirma Santos.

“A recuperação dos reservatórios é ainda insuficiente. O que se impõe é estimular a produção de energia com outras fontes – mesmo intermitentes – como energia eólica, solar e bagaço de cana, e portanto economizar água nos reservatórios”, completa Goldemberg.

Segundo a última medição disponível no site do ONS, de domingo (20), o nível do Lago de Furnas está em 764,33 metros, o que representa 71,58% de volume útil. No mesmo período de 2015, ele estava em 754,70 metros (17,18%), pouco acima do seu limite de 750 metros. Mas em 2012, antes de enfrentarmos a estiagem dos últimos anos, o nível do Lago de Furnas no mesmo período era de 766,92 metros, quase 91,18% de volume útil.

Com o início do período normal de estiagem, no meio do ano, a Alago não pode afirmar que a situação é tranquila em definitivo. “O ideal seria que o lago atingisse mais três a quatro metros de nível até o fim de abril, para a situação se tranquilizar”, alerta Costa.

Furnas chega a perder 17% de energia por esvaziar. Então é um conceito errado. Pra produzir mais, eu não preciso esvaziar, pra produzir mais eu tenho que deixar o reservatório mais cheio.”
Afonso Henrique Moreira Santos, ex-secretário nacional de energia

Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), este início de ano teve chuvas acima da média em muitas regiões de Minas Gerais, como no Centro-Oeste, onde está a capital Belo Horizonte (MG).

Mas no Sul de Minas, onde está Furnas, a chuva ainda ficou abaixo da média histórica, chovendo cerca de 80% do que era esperado para janeiro e fevereiro deste ano. “Claro que houve uma recuperação [dos reservatórios com as chuvas], melhorou bastante em relação ao ano passado, mas não chegou ao ideal”, completa o meteorologista Luiz Ladeia.

Em meados de abril, entra o período normal de estiagem no país e as previsões do Inmet batem com o esperado. O volume de chuvas tende a ir reduzindo até 15 de abril, quando elas devem cessar até o início do período de chuvas. Seja para água, energia ou para o bolso, ainda é preciso rezar para que a chuva não deixe de cair.

Posições oficiais
Sobre manter o nível mínimo satisfatório, a assessoria de Furnas Centrais Elétricas afirmou que “as usinas hidrelétricas brasileiras são componentes do Sistema Interligado Nacional (SIN) e a sua operação é planejada e programada pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). O nível do reservatório e a energia despachada são programados pelo ONS, que opera o conjunto de reservatórios brasileiros de forma integrada, com o objetivo de garantir a segurança energética”.

Questionado sobre o assunto, a assessoria do ONS se limitou a comentar que opera dentro do limite que ele pode operar, e que geralmente se liga as termelétricas mais baratas primeiro, e se há necessidade, as mais caras. Atualmente, o nível de Furnas é considerado muito bom pelo operador. O ONS não se manifestou sobre a possibilidade de manter os reservatórios cheios em períodos de estiagem.

Nível da represa está 13 metros abaixo do normal em algunspontos (Foto: Reprodução EPTV)Nível da represa da Furnas tem se recuperado com as chuvas dos últimos dias 

Já a Aneel informou que as bandeiras tarifárias “sinalizam, mês a mês, o custo de geração da energia elétrica que será cobrada dos consumidores, podendo variar conforme os índices da geração de energia. A evolução positiva do período úmido de 2016, que recompõe os reservatórios das hidrelétricas, aliada a aumento de energia disponível, redução de demanda e adição de novas usinas ao sistema elétrico brasileiro, possibilitou a mudança das bandeiras tarifárias nos últimos meses – atestando que o sistema, criado pela ANEEL, sinaliza com precisão o custo real da energia gerada, possibilitando aos consumidores o uso consciente da energia elétrica. Com a sinalização dada pelas bandeiras tarifárias e a adesão da sociedade a hábitos de consumo consciente e combate ao desperdício de energia elétrica, há uma gestão mais sustentável da demanda de energia.”

O Ministério de Minas e Energia completou dizendo que, “com a melhora das chuvas no país, que torna a geração pelas usinas hidrelétricas mais favorável e permite redução no custo de geração de energia […], a partir de abril será implantada a bandeira verde, com o desligamento de mais usinas termelétricas, o que permitirá que as contas de luz relativas ao consumo de abril sejam entregues sem  a cobrança da taxa extra.”

O ministério disse ainda que “as fontes renováveis (hidráulica, solar, eólica e biomassa) representaram aproximadamente 79% da matriz de produção de energia elétrica no país. Segundo o Plano Decenal de Expansão de Energia – PDE 2024, as fontes renováveis na matriz energética brasileira, representarão 45,2% em 2024, indicador superior ao verificado em 2014, de 39,4%. Na matriz de geração de energia elétrica, as renováveis deverão representar perto de 86% em 2024, superando a atual predominância destas fontes. Destaque para a energia eólica, que dos atuais 5,6% da de participação na matriz de capacidade instalada de geração de energia (janeiro/2016) elétrica deverá passar a 8% em 2024, devido à expansão de 20 GW no período.”

 

Fonte: G1



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